Fé cega


Meu cão de guarda rosna baixo
para a presença que ele só ouve
e que eu só sinto
ambos não veem
o visitante que se acomoda
sem ser convidado
Sua presença exala tanta solidão
que o deixo ficar
Não imagino quem seja, se:
espectro, imaginação ou resto de fé
mas poucos cruzariam minhas portas trancadas
e após engolidas todas as chaves
quem se atreveria a bater?
A espécie de alma pressente minha angústia
e atravessa paredes
senta-se sem cerimônias no chão
Meu cão, confuso
observa o ar que se movimenta
olha para mim enciumado
como se interrogasse
o que seria mais aquela companhia
c(o)alada no meu rastro.



só vou aguentar esperar a quaresma se você comer carne católica e incorporar orixás comigo

nina rizzi

minha noite é conexão.
e

a madrugada, intervalo.
pa
v
o
r
a

*

Imagem de Duy Huynh.


ècran sourrealist
nina rizzi

não me depilo. às vezes eu passo um barbeador nas pernas, porque tem pouquíssimo pelo. já as axilas, olha a merda, sou alérgica a cera e outras coisas, então vivo assim. estranha, erguendo os braços procurando lá no alto os pássaros que me trazem sua voz que me canta.

eu moro num prédio que você deve imaginar como é, claro que as minhas ficções, por serem ficções melhoram as coisas, mas é mais ou menos aquilo. eu divido o andar com dois velhos gays. são até bacanas, ouvem ópera e modinhas de viola, mas é tão alto e aí falta o silêncio, como eu adoro o silêncio, apesar de como você, às vezes, desandar a falar feito doida. ah, silence is sexy. (odeio citações em inglês).

você se sente só no meio da multidão que te cerca (eu sou) ou não o gosta da prática e é teoria? eu aprecio muitíssimo o contato, mas como platônica isso é o diabo. eu queria mesmo deixar de falar com você agora, mas que fazer se eu só atraio pessoas assim: distantes? queria as coisas mais reais por aqui, no entanto eu nem sei dizer o que é real e o que é puramente imaginário, não sei dizer. acho que enlouqueci, na verdade é possível que você nem exista.

é claro que eu não vou te deixar a sós, assim. que besteira, que ideia. não percebe que eu já me ferrei, que tô fudida? você foi direto na jugular, beibe! queria estar mais perto agora e isso é um bom motivo pra eu não me cansar. sabe que, é engraçado porque tenho impressão de... eu te leio e parece que tô a ler um texto que escrevi em transe e por isso não me lembro. se eu fosse inventar uma personagem pra me amar ela seria assim.

hm... eu sei que... bem... que tal andar por aí, à noite? eu adoro caminhar... à noite. se você não se importar, quero pegar a tua mão. minhas mãos tremem. acho que é a primeira vez que eu pego na mão de alguém. eu me assusto, tremo... você me aparece pela primeira vez, e eu te vejo pela terceira vez.

senão, ficamos feito adélia prado: ou nos tornamos santos ou... bem, eu sou uma deusa renascentista, diana ellenía. veja o cão griffon. melhor: me veja. sim, é verdade pensei a noite toda nisso (nesse calor quem dorme?) você vai gostar muito da casa de portinari. santos com rostos humanos que sacrilégio. quero a tua virgindade como a da virgem maria.

kore, sei que você virá trazer flores ao tártaro, isso anda tão feio. é que eu sou tão monstruoso quanto diego rivera. sim, no sentido da palavra. no sentido sagrado do termo. real. ó, rainha do tártaro eu te faço, kore era uma criança e agora dá lugar à mulher, rainha do mundo subterrâneo e vil. fiz um quadro pra você kore, verá quando for perséfone, mulher, rainha, musa, flores. fita no cabelo. sagrada, minha puta. [...]

mas o que é sumiço, senão medo, sempre terrível, as perdas e partidas?

ei menina, tudo é muito estranho, sim beibe... bem andado é mais que muito estranho mais que o convencional. que loucura chata essas convenções. e esses acenos e você aí se imaginando no lugar dela, eu chegando e te abraçando, acho que você é que me pegava no colo que me parece tão espevitada e me pegava no colo e me rodava e a gente não sabia mais qual era a perna de quem e na real era tudo a gente mesmo, pernas e cinturas. e eu chego e a gente se agarra e somos eu e você, sim senhorita, minha senhora das profundezas belicosas. eu e você nos abraços e risos, aqueles risos tão largos que quando ficavam sérios já tinham se aderido ao chão e e tudo era um só riso e a gente fazia troca-troca.

mãe querida, que bom não te ter ontem na tua própria casa. eu sei que fui te visitar, mas desde a música da noite anterior e desde então não dormir... que que há, hein?! ah, as águas tempestuosas continuam correndo, elas são rebeldes, mas é melhor esta rebeldia que a das barreiras nas margens. mãe eu já te disse: meu desejo mais ardente, ó, mãe, chega destes sonhos que restaram por indolência, chega desses gurus que crescem feito urtigas nos muros de quintais, chega. eu continuarei a sonhar com a áfrica. sim eu já te disse com os olhos molhados, sou mesmo assim vivo a mendigar afeição e você me respondeu sem lenço nas mãos que eu sempre procuro errado. ó, mãe, mas que faço se não sei me educar, se desde a infância sou assim: turttle blues. hard core? não querida. agora eu só quero uns miados. onde estão meus gatos?

ó, minha filha, porque você tem sempre que ser assim? até porretada na cabeça já te dei, mas você não tem jeito saiu a teu pai, até pior já que ele é politicamente correto e, que eu saiba, não tem tendências homossexuais...

beibe, eu não sumirei e por favor não o faça, ou então me acostumo e aí viro autista de vez e faço

intermezzo di quasi abastanzza
[...]

faço?
*

Um causo 'cem' motivos

 


I

....................Minha boca se perdeu da tua
....................no momento da fusão.
....................Não era para causar furor ou dúvida
....................mas gerir a ebulição.

II

....................Tal foi o meu espanto
....................foste a tua indignação.
....................Não se sabia se branca ou escura
....................a causa da indisposição.

III

....................E ali ficamos sem notícias
....................à mercê do jogo de adivinhação.
....................Com pouco apareceu a polícia
....................a prova final da humilhação.

IV

....................O soldado da milícia
....................pôs maior fogo na confusão.
....................Ousando fazer malícia
....................da quizila e má reputação.

V

....................Como toda farta fadiga
....................tem também fim a narração.
....................E essa durou deveras deriva
....................por cem motivos de opinião.

VI

....................Eu, a pobre heroína,
....................não quis ficar na contramão
....................Fui-me com o soldado de polícia
....................para não perder a ocasião.

VII

....................Tu, o moço descontente,
....................compensaste a solidão.
....................Dedicastes à Virgem Santíssima
....................teu novo amor, guia, proteção.

VIII

....................Assim se deu nosso causo:
....................Cem motivos de espanto e aversão.
....................Tu vestiste farda bata abatida
....................Eu, laranja-lima da região.

IX

....................E como preza boa cantiga
....................foste, tu, benfeitor da união...
....................Deste a bênção Divina
....................ao casal motivo de expiação.

X

....................Agora só nas horas altíssimas
....................trocamos os credos de devoção...
....................Confesso-te as asas partidas
....................Tu alivias a dor da desilusão:

....................Cem Salve Rainha, Cem Padre Nosso,
....................Cem Ave Maria...

....................Aleluia, Senhor, Amém!...



*Causo em ão narrado no dia 26 de maio de 2008, no HF diante do espelho.
* Imagens de cordéis disponíveis no Google.